terça-feira, 22 de setembro de 2009

Reservado

Tudo o que encontrei
na minha longa descida,
montanhas, povoados,
caieiras, viveiros, olarias,
mesmo esses pés de cana
que tão iguais me pareciam,
tudo levava um nome
com que poder ser conhecido.
A não ser esta gente
que pelos mangues habita:
eles são gente apenas
sem nenhum nome que os distinga;
que os distinga da morte
que aqui é anônima e seguida.
São como ondas de mar,
uma só onda, e sucessiva.
João Cabral de Melo Neto, O rio





Foi namorar, perdeu o lugar.

É assim que os pequenos explicam sua lógica de “revezamento”, por assim dizer, em situações como parques com mais crianças do que brinquedos.

Imagino que aquelas com mais recursos não costumam usar esse argumento. Nunca estive neste grupo, mas penso que elas devem ter espaços e brinquedos reservados, específicos, que podemos chamar de assentos permanentes.

Seria natural que, sabendo que tal privilégio existe, outras crianças quisessem um espaço semelhante. Contudo, se o mundo dos homens fosse justo, os assentos permanentes não existiriam. Se ele fosse ao menos um pouco mais responsável, os brinquedos seriam distribuídos de acordo com méritos individuais: quem estuda, faz a lição e ajuda a arrumar a casa deveria escolher primeiro.

Questão semântica

Somos uma geração que perdeu o privilégio de não fazer nada, aquele doce não-fazer-nada que é a mansa hora de repouso.
Elsie Lessa, Gente


Diariamente, na caminhada do almoço, passo ao lado de um poste-it, que vem a ser o anúncio de papel colado em determinado ponto de iluminação pública, que faz propaganda de um curso de “gnose”.

Não sei o que essa palavra pode significar. A preguiça de consultar o dicionário me faz passar algum tempo criando possíveis explicações. Seria um sinônimo de hipnose? É provável que não, apesar da fonética. Jornalismo, talvez? Ouvi falar de cursos que formam esses profissionais em 45 horas...

Mas deixemos o divagar de lado. Como o anúncio não diz o que significa a tal da “gnose” (suponho que seja um substantivo feminino), penso que deve ser uma daquelas coisas que faz parte do chamado senso comum e que é ignorada apenas por seres ignorantes, como eu. Também pode ser uma estratégia para despertar a curiosidade do “público”.

Se foi isso mesmo, devo dizer que a tática deu certo, pelo menos comigo.

Após esse anúncio, o interesse em saber o que significa “gnose” é maior do que a vontade de acompanhar os jornais.


* atualizado às 11h12

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Defeito crônico

Afinal, quem julgar que este mundo é fácil entrou no planeta errado.
João Antonio, Morreu o Valete de Copos


Está no G1. A desigualdade no Brasil caiu 9% em dez anos.

É como se todas as pessoas interessadas em inclusão social estivessem em um carro, com o objetivo de chegar a um local onde dizem existir justiça, direitos básicos e oportunidades iguais para todos.

O otimista destaca que estamos no caminho certo.

O pessimista reclama que a direção pode até estar correta, mas estamos tão devagar que nunca chegaremos ao destino planejado. Além disso, quando acabar a descida, alguém precisará descer e empurrar.

O pragmático reclama da conversa. Ele está ocupado pensando em como trocar a atual "carroça" da inclusão por um veículo mais rápido. Mas não há sequer um carro nessa estrada além do que eles ocupam.

O terórico senta-se e pensa no assunto. Deve existir alguma explicação filosófica. Para clarear o raciocínio, recorre aos doces que carrega na mala. Enquanto isso, engorda e deixa o carro mais pesado.

O intuitivo faz o que pode: reza um mantra para acalmar os ânimos durante a longa viagem. Mas no fundo, sabe que não está ajudando muito...


Com tanta gente, bem que alguém podia abrir o mapa e procurar um atalho.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Erros, acertos

O povo sabe muito bem onde põe os olhos e os jornais contam muito mais verdades do que supõe o ingênuo público, viciado a acreditar em desmentidos
Rachel de Queiroz, Os discos voadores

Continuo no esforço para manter o blog atualizado e prometo que não farei apenas indicações de textos e comentários. Eventualmente, os (dois) leitores encontrarão considerações aprofundadas e inéditas. Eventualmente.

Mas a coluna de hoje do Tostão merece ser lida. A análise é interessante e o finalzinho é genial.

A vida dá muitas voltas

LUIS FERNANDO Veríssimo escreveu no jornal "O Globo": "Os últimos sucessos da seleção criaram uma cisão entre os eclesiásticos com relação ao Dunga. Há os que os fatos obrigaram a aceitá-lo, e os que nada os fará aceitá-lo, muito menos os fatos".

Continuo o assunto. Não só a imprensa mas também atletas, treinadores e profissionais de todas as áreas têm grandes dificuldades de aceitar os fatos, quando esses contrariam suas opiniões e seus desejos.

Para serem mais elogiados, alguns técnicos e jogadores costumam fazer ótimas tabelinhas com a imprensa oba-oba.

Quando os fatos mostram que as críticas estavam erradas, e que os técnicos estavam certos, esses costumam dizer: "Vão ter que me engolir", "O que vale é o que acontece no campo", "Calei a boca dos críticos" e tantas outras frases. Alguns não suportam nem as críticas da torcida, como o rancoroso Dunga, ao fazer gestos para os torcedores durante a partida contra o Chile.

Em uma recente entrevista, Dunga, com raiva, disse que estava muito feliz. Dunga não quer ser feliz. Quer ser vencedor.

Poucos treinadores reconhecem seus erros. Diante do sucesso, nun- ca falam que aprenderam com as críticas.

Comentaristas torcem para suas opiniões darem certo. Adoram dizer: "Como falei". Quando os fatos os desmentem, dizem que as coisas mudaram. Poucos reconhecem seus equívocos. Alguns fazem isso só para mostrar que são humildes. Pouquíssimos aprendem com os erros.

Comentaristas e profissionais de todas as áreas costumam escutar ótimas opiniões diferentes e, em vez de entendê-las e incorporá-las, preferem ignorá-las, mesmo se as opiniões vierem de pessoas qualificadas, ainda mais quando são ditas por pessoas de outro grupo de trabalho. Não querem aprender nem evoluir. Querem competir.

Como há tantos fatores envolvidos no resultado de um jogo e na conquista de um título, opiniões e condutas que eram erradas passam a ser corretas, e outras corretas passam a ser erradas. Contra fatos, há argumentos.

A cada dia, mais gente fala de futebol, principalmente em programas esportivos. Opiniões brilhantes passam a ter o mesmo valor que as medíocres. E ainda dizem: "É a sua opinião contra a minha".

Muitos telespectadores, ouvintes e leitores não querem saber de discussões, análises e dúvidas. Querem saber de opiniões definitivas, radicais, polêmicas ou quem vai ganhar o jogo. Dão mais audiência.

É também difícil ser um observador totalmente neutro. Carregamos com as análises nossos conceitos, pré-conceitos, preconceitos e emoções. O fato, a verdade de hoje, pode ser uma mentira amanhã. As coisas vão e voltam. "A vida dá muitas voltas. A vida nem é da gente." (João Guimarães Rosa)

Quase iguais
Marcão, do Palmeiras, e o argentino Heinze são parecidos fisicamente, canhotos, jogam mal de zagueiro, pior ainda de lateral, e possuem a mesma e única virtude, são bons na jogada aérea. Deve ser por isso que os técnicos gostam tanto dos dois. Heinze teve mais sorte. Atua na seleção argentina e já jogou em grandes equipes da Europa.


Comentário:
O debate de ideias não poderia cair na mediocridade do "opinião é como bunda, cada um tem a sua". A frase da filosofia butequeira é engraçada, mas não deveria ser a máxima de "especialistas" que se predispõem a não conviver com ideias diferentes das que atendem seus interesses.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Tolerância

"e o santo quieto, deixando que elas lhe contornassem o pescoço e os emblemas, como se não tivesse outro ofício que esse de dar pouso às pombas".
Machado de Assis, O câmbio e as pombas


Transcrevo aqui um artigo interessante, publicado hoje pela Folha de S. Paulo. A minha análise sobre o tema é na linha do que disse Fiat Sentencius: "Há homens que maltratam o filósofo. Eles afirmam: posso não concordar com sequer uma palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o direito de dizê-las. Desde que diga o que me interessa".


Véu islâmico, laicidade e liberdade religiosa

PAULO GUSTAVO GUEDES FONTES

Laicismo é uma deturpação da laicidade. Ele perde de vista a liberdade religiosa e quer impor à população uma forma de secularização

DEPOIS DE provocar muita polêmica em 2004, quando seu uso foi proibido nas escolas públicas francesas, o véu islâmico voltou a agitar a política da França e da Europa neste ano.

No último dia 22 de junho, o presidente francês, Nicolas Sarkozy, manifestou aos deputados e senadores da França o seu repúdio ao uso da burca e do chador e seu apoio a eventual ato legislativo que pretenda proibi-los no território francês. (A burca e o chador nada mais são do que a versão mais fechada do véu islâmico.)

Sarkozy afirmou, na ocasião, que a questão não teria caráter religioso, mas diria respeito à igualdade entre homens e mulheres. Para o presidente francês, a burca é um signo de submissão das mulheres.

Nessa mesma linha, em 4 de dezembro de 2008, a Corte Europeia dos Direitos Humanos, sediada em Estrasburgo, considerou justificada a expulsão de duas alunas muçulmanas de uma escola pública francesa por terem se recusado a retirar o véu nas aulas de educação física. Aquela corte entendeu que não houve desrespeito à liberdade religiosa.

Contudo, tais medidas podem, sim, ferir gravemente a liberdade de crença e de religião. É compreensível que se proíba o uso de signos religiosos pelos representantes do Estado, como juízes, policiais ou mesmo professores de escolas públicas. Mas que tal proibição atinja o próprio cidadão na sua vida privada, isso constitui uma deturpação do princípio da laicidade.
Não se pode entender a laicidade do Estado sem referência à liberdade religiosa. É a outra face da moeda.

Por que razão o Estado deve ser laico? Porque, representando todos os cidadãos, não poderia abraçar uma opção religiosa sem alienar dessa representação os cidadãos de outra crença ou mesmo os que não professem religião alguma. Assim, a liberdade de religião, aliada a uma nova concepção do Estado e da igualdade, está na origem da laicidade.

De qualquer forma, é aos agentes e funcionários do Estado que o princípio da laicidade se dirige, vedando que expressem, no exercício da função pública, suas preferências religiosas. Os edifícios públicos, da mesma maneira, deveriam manifestar essa neutralidade diante da religião.

A laicidade é exigida sempre do Estado, nunca do cidadão, do particular, para o qual vale a liberdade de professar qualquer crença ou religião. A menina que vai à escola francesa não representa o Estado. É para que os cidadãos possam usar crucifixos, véus ou quaisquer signos religiosos que o Estado se laicizou, que se tornou neutro diante da opção religiosa.

Vedar à jovem o uso do véu islâmico, mesmo na escola pública, é violentar sua liberdade religiosa, mormente pela importância que essa questão tem para as mulheres muçulmanas.

Vedar o seu uso no território de um país é medida que remete às guerras de religião.

O que tem sido professado na França é uma deturpação da laicidade, o laicismo, versão militante daquela.

Ele perde de vista a liberdade religiosa e quer impor à população uma forma de secularização.
Norberto Bobbio estabelece essa distinção. Para ele, a laicidade, ou o espírito laico, não é em si uma nova cultura, mas uma condição de convivência de todas as possíveis culturas.

Por outro lado, assevera que o laicismo que "necessite armar-se e organizar-se corre o risco de converter-se numa igreja em oposição às demais".

Por fim, parece igualmente autoritário o argumento de Sarkozy de que a proibição visaria à igualdade entre homens e mulheres.

Ainda que se considere o véu islâmico incompatível, mormente na forma da burca, com a visão que temos da mulher no Ocidente, ele é certamente um signo religioso.

Se uma mulher oculta seu rosto e cabelos -ou o corpo inteiro- por respeito à religião ou se o faz por medo do marido ou do militante islâmico do bairro, só ela pode saber.

Na dúvida, para não ferir algo tão íntimo e inviolável quanto a liberdade de crença e de religião e para não retrocedermos alguns séculos, é melhor deixar que ela retire o seu véu espontaneamente, convencida que venha a ser disso pela cultura ocidental da igualdade, da liberdade e da fraternidade -que costumavam ser a divisa dos franceses.

PAULO GUSTAVO GUEDES FONTES , mestre direito público pela Universidade de Toulouse (França), é procurador da República em Sergipe.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Com calma

"Olhou para a criatura que tinha a seu lado: a lua lhe batia em cheio no rosto. De tão claros, seus olhos pareciam vazios"
Érico Veríssimo, Um Certo Capitão Rodrigo

Alguns textos merecem ser lidos em um ritmo mais lento do que a internet costuma nos impor.
Percebi o óbvio ontem, quando quase deixei de notar a beleza do trecho acima.